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Shu Ha Ri | O Aikido e sua filosofia criativa — parte 2

Neste artigo continuo a conversa que iniciamos no anterior “O Aikidô e sua filosofia criativa — parte 1” =)

Nesta segunda parte, explico um pouco sobre a origem do Aikidô e abordo um dos aspectos de sua filosofia, que se conecta à forma como seus praticantes aprendem e como que isso se relaciona com a jornada de um profissional criativo.

O Aikidô foi fundado por Morihei Ueshiba (O-Sensei), na primeira metade do século XX, no Japão. Um dos pilares filosóficos e espirituais desta arte marcial era uma religião recente, na época, conhecida como Oomoto-kyu, que pode ser traduzida como “Grande Origem”. Ela possuía raízes no Xintoísmo e acreditava que “Deus é o Espírito que anima todas as coisas e o homem é o administrador de um governo universal. Quando o homem se une com Deus, manifestam-se uma autoridade e um poder infinitos.”

Essa filosofia carregava um série de ensinamentos tradicionais japoneses. Entre eles, o Shuhari, que já havia sido incorporado por outras artes marciais antes mesmo do Aikidô.

Shuhari é conhecido como a sintetização do processo de aprendizagem de uma arte, seja ela marcial ou não, e se divide em três estágios: (Shu, 守:しゅ: obedecer/proteger; Ha, 破:は: romper/modificar; Ri, 離:り: separar/superar).

No estágio Shu, o praticante iniciante é apresentado à filosofia, à estrutura dos golpes e repete exatamente aquilo que lhe foi falado, corrigindo os erros apontados pelo seu mestre e refinando sua arte a cada novo golpe.

Após muito treino, o aprendiz domina as regras básicas de sua arte e encontra a sua própria forma de fazer alguns movimentos. Este estágio é conhecido como Ha.

Finalmente, o aluno se torna mestre e passa a sentir sua própria arte, abandonando as regras básicas e se torna naturalmente criativo, alcançando a liberdade de ser aquilo que tanto praticou. Ele alcançou o estágio Ri, o último de seu processo de aprendizado.

Após compreender estes três estágios, fica mais fácil compreender o caminho para a criatividade, pelo olhar da cultura japonesa e suas artes marciais: 1) aprender o básico e obedecer fielmente aquilo que lhe é ensinado; 2) dominar as regras básicas e descobrir sua própria forma de fazer; 3) alcançar a liberdade do fazer e, assim, criar.

Podemos traçar um paralelo do Shuhari com o aprendizado de diversas softs skills. O calígrafo, por exemplo, precisa aprender a forma das letras em determinados estilos de escrita e praticá-las até que seu corpo aprenda a reproduzi-la perfeitamente. Após este treino, ele passa a reconhecer características de seu estilo em sua grafia e os incorpora à sua forma de caligrafar. Por fim, ele alcança o estágio de escrever com seu corpo e alma. Suas letras saem belas não importa de que forma as faça ou quais ferramentas utilize. Ele está em Ri.

Algo próximo também ocorre com os músicos. O jazzista Clark Terry, no artigo3 passos para aprender improvisação, revela que a arte de aprender a improvisar está em três palavras: imitaçãoassimilação inovação. Terry defende, portanto, que se faz necessário imitar os artistas que admira e, com a prática, começar a compreender as pequenas nuances escondidas entre as notas. Isso só será possível ao conseguir incorporar à sua mente não consciente todos os movimentos necessários com exatidão. Só assim a ginga, os tempos e as harmonias passarão a se destacar em seus ouvidos e será possível iniciar a construção de seu próprio estilo. Com isso, poderá improvisar com liberdade e assertividade. Para Terry, não é possível improvisar verdadeiramente sem que os passos da imitação e da assimilação tenham sido percorridos exaustivamente.

Graças a Terry, percebemos a importância do rigor em adquirir repertório. Isso mesmo. Ao treinar exaustivamente e buscar referências em seus ídolos, o criativo inicia seu processo de criação e gestão de seu próprio repertório. Ele primeiro trilha os caminhos de seus mestres e, durante o caminhar, identifica aquilo que faz parte de seu estilo e o absorve. Aquilo que aprende e percebe que não faz sentido para sua jornada, descarta gentilmente.

Muitos criativos acreditam em fórmulas mágicas, cursos reveladores e metodologias inovadoras que prometem desbloquear sua criatividade e torná-lo criativo da noite pro dia.

Cuidado.

Você já é criativo.

Você sempre foi criativo.

Talvez só tenha parado de praticar. E praticar, como vimos, é apenas o primeiro estágio de uma longa e criativa caminhada.

Um dos sintomas que mais identifico em sala de aula e no mercado (e em mim, muitas vezes) é a necessidade de querer queimar etapas do processo criativo e acreditar que sua primeira ideia é a melhor. Que a crítica do colega é recalque ou exagero porque seu trabalho está perfeito. Que o ponto de vista do design ou de outra área mais ligada às soft skills seja considerado secundário e até mesmo irrelevante em projetos multidisciplinares.

Novamente, cuidado.

Boa parte destes argumentos refletem uma dormência artística e até mesmo certa preguiça em percorrer o duro caminho do desenvolvimento técnico e criativo. Cada apontamento, cada refação e cada sugestão lapidam o seu estágio de Shu e ignorá-los fatalmente o aprisionará logo no início de seu aprendizado. Sempre há algo a melhorar.

Essa é a magia do caminho do guerreiro. Do bom combate.

Até a próxima parte desta esticada!

Não deixe de comentar o que achou desse texto e não tenha pena de mim: critique com gosto!

Insightê a todos 🙏

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2 comments on Shu Ha Ri | O Aikido e sua filosofia criativa — parte 2

  1. RITA COUTO ROTH disse:

    Gostei!

    1. Jorge Godoy disse:

      Olá Rita! Que bom que gostou =) Caso se interesse pelo assunto, recomendo que ouça nosso episódio em que conversamos com o Sensei Luiz Amorim, onde discutimos isso e muitas outras implicações entre o Aikidô e a Criatividade!
      https://open.spotify.com/episode/3CLTpCW83aAVbIos9NMwX5?si=KZW–aTdQ3awqMxruUo0xA&dl_branch=1

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